quinta-feira, 9 de julho de 2015

[1939] Eutanásia de Freud

Freud e Anna

"Freud, agora, andava muito cansado e era difícil alimentá-lo. Mas, embora sofresse muito e as noites fossem particularmente penosas, ele não tomava e não queria nenhum sedativo. Ainda conseguia ler, e seu último livro foi o conto misterioso de Balzac sobre a pele mágica que se encolhia, La Peau de Chagrin. Quando terminou o livro, ele disse a Schur, num tom casual, que tinha sido o livro certo para ler, por tratar de encolhimento e fome. Era o encolhimento, na opinião de Anna Freud, que parecia falar particularmente ao seu estado: seu tempo estava terminando. Ele passou os últimos dias em seu gabinete no andar térreo, olhando para o jardim. Ernest Jones, chamado às pressas por Anna Freud, que achava que seu pai estava morrendo, chegou em 19 de setembro. Freud, lembra Jones, estava cochilando, como fazia com frequência naqueles dias, mas, quando Jones chamou "Herr Professor", Freud abriu um olho, reconheceu o visitante, "e acenou sua mão, então deixou-a cair com um gesto altamente expressivo que transmitia uma riqueza de significados: saudações, despedida, resignação". Então recaiu no sono.

Jones leu corretamente o gesto de Freud. Estava saudando seu velho aliado pela última vez. Havia renunciado à vida. Schur estava angustiado por não conseguir aliviar o sofrimento de Freud, mas, dois dias depois da visita de Jones, em 21 de setembro, quando Schur estava sentado à cabeceira de Freud, ele tomou sua mão e lhe disse: "Schur, o senhor lembra-se de nosso 'contrato' de não me deixar quando tiver chegado a hora. Agora, é apenas uma tortura e não faz sentido". Schur fez sinal de que não tinha se esquecido. Freud deu um suspiro de alívio, continuou a segurar-lhe a mão e disse: "Eu lhe agradeço". A seguir, depois de uma ligeira hesitação, ele acrescentou: "Fale com Anna sobre isso, e se ela achar certo, dê um fim a isso". Como vinha acontecendo há anos, também neste momento crítico, a Antígona de Freud ocupava o primeiro lugar em seus pensamentos. Anna Freud quis adiar o momento fatal, mas Schur insistiu que manter Freud vivo era inútil, e ela se submeteu ao inevitável, tal como seu pai se submetera. O momento havia chegado; ele sabia e agiu. Esta foi a interpretação de Freud sobre sua afirmação de que tinha vindo à Inglaterra para morrer em liberdade.

Schur estava à beira das lágrimas, enquanto presenciava Freud encarando a morte com dignidade e sem autopiedade. Ele nunca vira alguém morrer assim. Em 21 de setembro, Schur aplicou em Freud uma injeção de três centigramas de morfina - a dose sedativa normal eram 2 centigramas - e, Freud mergulhou num sono pacífico. Schur repetiu a injeção, quando ele se tornou inquieto, e administrou uma dose final no dia seguinte, 22 de setembro. Freud entrou num coma do qual não mais despertou. Ele morreu às 3 horas da manhã de 23 de setembro de 1939. Quase quarenta anos antes, Freud escrevera a Oskar Pfister, indagando o que se faria, "quando as idéias falham ou as palavras não vêm?". Não pôde evitar um "tremor diante desta possibilidade. É por isso que, com toda a resignação perante o destino que convém a um homem honesto, eu tenho um pedido totalmente secreto: apenas nenhuma invalidez, nenhuma paralisia das faculdades pessoais devido a uma degradação física. Que morramos em nosso posto, como diz o rei Macbeth".

Trecho de "Uma Vida para nosso Tempo" [Peter Gay, 586-587, Ed. Cia. das Letras, 1989]

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